O mundo continua, a gente passa
O mundo gira, impassível. Roda em seu eixo como se não notasse os gritos que o tempo guarda nas paredes da história. A gente passa.
Francisco passou, que pena.
Mao, dedos longos e duros apertaram vidas no punho fechado da China e do Tibete. Punho de opressão. Pedia Campanha das Cem Flores, ideias diversas às suas, e aos corajosos que as mostrou, a vida os tirou.
Deportados e famintos foram deixados ao frio da União Soviética. Tremores de fome, olhos ocos, silêncios forçados. Assim foi com os romenos sob Ceausescu, assim é hoje com os venezuelanos, errantes nas fronteiras da América Latina.
Um crime sem nome… mas a Europa sabe, mesmo quando finge esquecer. E os Estados Unidos sabem também — embora, tantas vezes, escolham não ver.
No Congo Belga, um país inteiro foi acorrentado por mãos estrangeiras que tomaram sua alma e a venderam em troca de borracha e sangue.
Em Bangladesh, a bala sempre encontrou um motivo para calar quem pensa diferente.
A Turquia conduziu a Caminhada para a Morte como quem escreve com passos um epitáfio coletivo.
E o Holocausto… este nome não precisa de adjetivos. Europa, tua neve derreteu com o calor das câmaras e se fez lágrima.
Ruanda se desfez em 1994. O rádio falava e a matança dançava com os facões.
E aqui nas Américas?
Os colonizadores... até ontem, os chamavam de conquistadores.
Portugal rasgou o Brasil como quem abre um livro apenas para queimar suas páginas. O modo de vida indígena foi esmagado sob botas e cruzes.
A Espanha plantou espadas e colheu ouro.
Plantio, cidades, extrações…
Tudo à custa de milhões de africanos escravizados.
De herança, raízes profundas de racismo, desigualdade, violência e a terra em poucas mãos.
O Camboja?
De 1975 a 1979, meus dez anos, um medo,
Às vezes o crime é tão grande que cabe no rosto de todo um povo.
Pol Pot matou 1,7 milhão, primeiro professores e intelectuais, depois camponeses, qualquer um que usava óculos.
Todos somos suspeitos. Todos culpados, por existirmos demais.
Por vezes não se extermina pelo punho, mas sim pelo dar as costas,
Bolsonaro, na Covid-19, escreveu sua linha nesta galeria do horror.
Negligência que mata é crime com nome: genocídio.
O mundo é tão diverso, por que ser diferente irrompe o perverso?
O tempo passou.
Mas a dor se recusa.
E o mundo? Continua.
Diante disso, podemos sucumbir. Virar estatística.
Deixar que o peso da história esmague nossas esperanças.
Que a repetição do horror nos torne insensíveis e o corpo padeça. A ironia?
Isso serve também — porque grandes números de vítimas, uma hora, indigna alguém.
E então!
Uma criança diante da TV, uma mãe lendo um livro perdido na estante, um velho anotando datas num caderno de capa dura. Alguém, em algum lugar, se levanta com o peito ferido e diz:
“Chega!”
Resistir também serve.
Erguer a voz mesmo quando ela falha. Plantar uma flor em campo minado. Contar uma história que todos querem enterrar.
Alguém tem que lutar, mesmo que lute com palavra, com memória, com lágrima.
Alguém tem que lutar.
Mesmo que os pobres sigam invisíveis, os mercadores permaneçam nos templos e as casas continuem sem alegrias —
Alguém tem que lutar!
A sociedade fez Sócrates beber cicuta —
não suportou a dúvida, não aceitou a pergunta.
Mas a dialética não passou.
A multidão fez Cristo morrer numa cruz.
A bondade foi espancada, mas a palavra não passou.
Então,
Gente passa — mas a obra fica.
Alguém como Francisco é obra prima.
Combatente da intolerância, da pedofilia e da ganância,
suplicante da benevolência, democratizou formando um conselho
várias vozes para uma nova igreja.
Deu voz a homossexuais, a pobres e às vítimas que sofrem no jugo do poder.
Tem gente que é assim, transforma ou tenta,
Até o último suspiro, o tempo aproveita,
Antes da Páscoa, não partiria
Assim concedeu com sua vida, uma última alegria.
E tem gente como eu,
que só serve para olhar e escrever essa história.
Escrever como quem sangra,
Escrever porque não sabe calar.
Escrever porque não sabe falar.
Escrever porque, mesmo sem força, ainda há um dever de lembrar...
Do Rapsódia em agosto, onde Akira traz Hiroshima e Nagasaki, uma vó contando para quatro netos, o que o mundo não pode esquecer para não morrer. E também o Krenak, com o Ideias para adiar o fim do mundo.
E se o mundo continuar assim, que ao menos saiba —
Brava gente passou e passa.
Mas não em silêncio,
À essa gente,
Não há mordaça.