O BOPE lá em casa.
Mais um daqueles dias que me divide, tento recusar o terceiro evento literário do dia, arrumar duas boas desculpas, uma para não ir ao parque amanhã com a ala infantil da família e outra para não ir gastar o dinheiro que não tenho no shopping com a ala jovem feminina. Para mim mesma? Só preciso de um pouquinho de paciência por não ter ido namorar esta semana. É, não está nada mole, nada fácil, um dia melhora.
Vou descendo as escadas do quintal da minha casa, os cachorros não me cumprimentam, não faz mal, não são meus mesmos, mas eu faço a minha parte:
¾ Como vai, sua cadela, filha do cão?
Finalmente, ela abana o rabo, adora quando eu a cumprimento, o outro nem se mexe, é velho, cego e surdo, só me nota se levo a comida.
O quintal é cheio de animais, ratos, lagartixas, lesmas, de tempos em tempos, algumas destas pegam-me mais distraída e comem a minha samambaia e os meus trevos. Tenho um vaso destes, de quatro folhas, se alguma sorte me falta, não é por falta de trevos.
Sigo rumo a minha casa satisfeita, minha samambaia anda mais viçosa, meus trevos nem se conta, altivos e em bando, mal entrei e já ouço a Juliana, minha periquita, num relance vi, está sem uma gota d’água, ela derruba a vasilha, pois anda revoltada. Vira e mexe ela bota dois ovinhos, começa a chocar e a empregada os joga fora, não estão galados, ou seria periquitados? Juliana é viúva há três anos.
Há meses eu tentei arrumar um macho para ela, Alexandra - minha irmã, me deu, mas foi um desastre. Não era macho, era uma fêmea, Juliana a matou a bicadas. Um vizinho ficou satisfeito com o desfecho, achava intolerante aquele homossexualismo, não sei como, mas só ele tinha notado que se tratava de duas fêmeas.
Chega. Deixa cair minha ficha, estou em casa.
¾ Mãe, mãe, eu te amo. Podemos ir no parque amanhã?
¾ Pára Zero Quatro, deixe a mãe chegar. Mãe, a benção, como foi o seu dia?
¾ Pára você, Zero Um. Mãe, trouxe bala? Sai daqui, a mãe é mais minha.
¾ Deus abençoe vocês, já jantaram?
¾ Não vamos jantar, comemos dois pacotes de bolacha, vou fazer ginástica.
Os meninos, eu os chamo de meninos mas têm mais de vinte anos, instalaram uma barra no batente da porta.
¾ Eu vou jantar, mãe, trouxe bala? – a caçula.
¾ Mãe, vamos assistir ao BOPE antes de dormir? – o mais velho.
¾ Daniel...
¾ Não! Não fale o meu nome, mãe.
Meu primogênito gritou isto, então percebi meu outro filho, que deveria estar a esta hora na faculdade, vindo do quarto.
¾ Você não foi para a aula?
¾ Não, já estou com notas e agora, só vou às aulas do professor João.
¾ Quem é este, Thiago?
¾ Não fale o nome dele, mãe – o Zero Um continua enfático quanto a menção dos nomes.
¾ João é aquele que escreve para a Caros Amigos, gente fina, os outros estão todos dentro do sistema.
¾ Lá vem o Zero Dois – o primogênito volta a protestar.
¾ Por que raios vocês estão se tratando por números?
¾ Segundo o Zero Um, da última vez que a senhora escreveu sobre nós, identificou nossos verdadeiros nomes, ele adotou este sistema copiando o BOPE.
¾ Vocês piraram de vez? O que vocês andam fumando ou cheirando de dia? – minha paciência ameaçava deixar a casa.
¾ Nada, nada, só a Zero Três fuma cigarros, você sabe. Eu sou a favor da liberação da maconha, por sinal, Gabriel Garcia Marques, o Gabo para os que lêem a Caros Amigos, recomendou isto como solução para a Colômbia.
¾ Lá vem o Zero Dois, lá vem o Zero Dois com estas idéias – ele pegou o rosto do Zero Dois com força e ordenava – pede, pede para sair, vamos, pede para sair desta família, pede!
¾ Eu não vou pedir para sair, Zero Um, eu sou desta família!
¾ Jamais, jamais será! Não alguém que defende a liberação da maconha.
¾ Você acha certo a polícia entrar sem mandato na casa das pessoas da favela e ameaçar uma criança com um cabo de vassoura no...
¾ Chega! A Zero Quatro está aqui, olha a boca...
¾ Não tem problema, mamãe, eu assisti o filme hoje com a empregada, todo mundo na minha classe já viu, também.
¾ Vocês querem me deixar louca? E parem com esses Zero, Zero, Zero...
¾ Eu sou contra a polícia repressora, sou a favor do filme que é uma boa arte, sou a favor da liberação da maconha, sou contra as crianças assistirem este filme, sou contra o sistema...
¾ Eh, mãe, nem ouve, ele é contra até ao sistema de ar-condicionado – o primogênito sempre ironiza as crenças do irmão.
¾ Querido, se você é tão contra ao BOPE, por que aderiu à numeração que seu irmão propôs para conversar?
¾ Porque sou contra a senhora nos identificar nos contos.
¾ Eu também sou contra – os meninos finalmente concordaram em algo.
¾ Eu não sou, mamãe, adoro, pode falar que eu sou a Heloísa, que eu não vou mais ser professora de química, quando eu crescer vou ser obstetra que nem o Hélio e escritora que nem você.
¾ Eu sou a favor do BOPE, eu ralei muito, terminei minha faculdade, vou casar e ter filhos, não quero a minha família a mercê da violência, do narcotráfico, quem não quer estar sujeito ao submundo, estude e trabalhe como eu.
¾ Zero Um, falar é fácil, queria ver se você tivesse nascido na favela.
¾ Chega! Chega! Não quero ouvir mais nenhum Zero nesta casa, vou tomar banho, a janta está quente, jantem, só saio do banho quando a Zero Três chegar.
¾ Ela falou Zero Três?
¾ Duas semanas sem ver o namorado, ela pira, temos que ter paciência.
A água cai quente no meu corpo, olho para todo ele, estou mais roliça, quase me adoro. Ouço o tintilar dos talheres na cozinha e a chegada da Zero Três. Os barulhos vão cessando, estão indo dormir, como sempre, a Zero Três e o Zero Dois vão primeiro, o Zero Um e a Zero Quatro, só por mandato.
Visto meu roupão, vou à cozinha e deparo com a cena na porta da geladeira:
¾ Só tem um iogurte, você hoje já comeu dois, sua pirralha.
¾ Me dá!
¾ Não, não dou, vou comer na sua frente, fica olhando. Pede para sair, vamos, pede, pede para sair desta família.
É, é isto. E algo me diz que ainda virá um Zero Cinco.