A responsabilidade da cultura alternativa
Coexisto com Chico Buarque, Lygia Fagundes Telles, Moacyr Scliar, Caco Barcelos, Lya Luft, Paulo Coelho, Dom Fernando – empossado semana passada pela Academia Paulista de Letras, parabéns, meu querido -, Flávio Moreira da Costa, Fernando Morais e tantos outros escritores, graças à cultura alternativa.
Alternativa a quê?
Alternativa à produção cultural de massa, realizada pelos grandes órgãos de comunicação. Sempre estive atenta às nocividades que são criadas para a manipulação do povo, através de músicas, campanhas, manchetes, programas e livros. Exemplo, no ano passado quando os jornais noticiaram a Virada Cultural Paulistana apenas pelo incidente na Praça da Sé e praticamente não citaram as dezenas de outros eventos que foram um sucesso, manchando a imagem da Virada para a população expectadora, aquela que não participa, só fica sabendo.
Conheci a Eliane Brum da revista Época na semana passada e ela falava sobre os desacontecimentos. Contava-nos que hoje em dia tem espaço para falar das coisas e pessoas que não viram manchete, escreve sobre pais que não jogam os filhos pela janela, pessoas que trabalham e ganham honestamente o seu dinheiro. Falou sobre irmos a fundo na preparação de reportagens, não limitar-nos a telefonemas e e-mails para conhecer as pessoas, partir para o cara a cara, única condição para sermos bem comunicados, pois os gestos e os silêncios por várias vezes dizem muito mais que as palavras. Coloquei-me a refletir depois de ouvir seus comentários.
Num dia qualquer do ano passado, me peguei lendo um texto de Lya Luft, que salvo me engano escreve para a Veja, a qual meus amigos alternativos chamam de Óia, e ela falava sobre casais que na velhice, depois de anos divorciados voltavam a morar juntos devido os reveses da vida. E em nome da economia, praticidade e necessidades feito essas, voltavam a se relacionarem, passando por cima dos motivos que os levaram a se separar como ciúmes, prepotência, enfim, negatividades que no passado eram cavalos-de-batalha e com o tempo viraram bobagens, pequenas coisas do dia-a-dia que no contexto de uma vida inteira não passam de picuinhas pelas quais não valem à pena se separar da sua melhor companhia.
Eu que fui uma pré-adolescente assistindo Malu Mulher e torci no dia da votação do divórcio para que fosse aprovado na Câmara, fui obrigada a parar e refletir sobre quão verdadeiras foram as bandeiras que já levantei.
Viva, viva, viva a sociedade alternativa, viva, viva! Esta música do inesquecível Raul, composta com o escritor consagrado Paulo Coelho, podem revirar o estômago os literatos, porém esta é uma verdade inquestionável: ele é consagrado no mundo inteiro; fala de que façam o que quiser, pois é tudo da lei. A massa cantava e canta pensando estar dando vazão à ideia de contraponto ao sistema, que sistema? Governamental, ditadura, cultural, a qualquer sistema de manipulação, no entanto quem compunha acreditava estar dando voz ao Demônio e à seita O.T.O. que pouquíssimas pessoas no mundo conheciam, portanto, a música que pregava a não manipulação tinha todo um objetivo de manipular. Recomendo que leiam O Mago de Fernando Morais.
Ando quase a crer que a cultura alternativa, várias vezes, é mais nociva que a oficial.
Para regular ou criticar a nossa produção, a dos alternativos, não há profissionais, os grandes não gastam seu tempo conosco, não somos vidraça atrativa. O público que nos consome, geralmente tem muitas oposições ao sistema, então, nos aceita sem grandes questionamentos. Vou citar um exemplo.
Há quinze dias atrás aconteceu a feira multicultural da Pompéia. Fui convidada a participar da feira de livros e do espaço literário dela, o que tinha jurado mil vezes que não o faria mais, desde novembro conseguia não me envolver nessas coisas, mas acabei aceitando, pelo pedido da minha amiga, a atriz Sabrina Carvalho. Deixe-me explicar o porquê decidi ser mais seletiva para com estes eventos. Nas feiras multiculturais rolam shows de música de vários tipos, barracas de artesanato, comes e bebes, o público andando, dançando, cantando, divertindo-se no meio da rua, um ambiente bastante descontraído, porém longe do ideal para a literatura. É extremamente difícil produzir um sarau de qualidade após o público ter acabado de cantar a todo pulmão o Rappa, por exemplo. As pessoas estão agitadas, dispersas, e embora eu já tive sucesso em desafios como esse, o esforço é tamanho que não vale à pena, financeiramente nem dou detalhes, acho que se somar todos os livros que já vendi em eventos assim, não chegam a dez. As mulheres compram brincos, os homens artesanato e todos tomam cerveja, mas livro que é bom para mim, ninguém compra. À exceção dos eventos na Casa das Rosas, onde a música complementa o nosso trabalho e o livro é o ídolo, os locais e eventos que se predispõe à literatura não têm sucesso, são ineficazes e ineficientes. Mas já que eu estava na Feira da Pompéia, fiz o meu papel, sentei-me na barraca, espalhei livros e tentava conversar com as pessoas sobre literatura. O palco na frente do espaço literário deveria ser exclusivo a saraus, no entanto, Edison do projeto Autor na Praça tomava conta e colocou bandas, extrapolou o tempo, por último, decidiu falar sobre nos preocuparmos com o fim dos manicômios, pois queria homenagear o Austregésilo Carrano Bueno, autor do livro Cantos dos Malditos que inspirou o filme Bicho de sete cabeças. Homenagear o Carrano eu achei bacana, ele morreu há alguns meses, será legal que as futuras gerações saibam que ele foi uma peça importante para que se mudasse no Brasil a lei dos manicômios, mas conclamar a população para fazer isto, agora, depois que essa lei já foi sancionada pelo presidente desde 2001, é desinformar a população. Atentei-me para este desserviço do Edison, quando duas jovens de uns 20 anos me falaram que nunca tinham assistido o filme, mas que estavam emocionadas e iriam lutar por essa causa, acreditem, lutar por uma causa que já nem existe, resolvida. Devem existir hospitais para saúde mental ruins, sempre haverá coisa e pessoa ruim, mesmo entre os bons, independente de qualquer sistema. Durante a minha vida toda tive familiar, marido, amigos, alguém internado em casas de saúde mental, passo alguns anos em paz e este é um problema que retorna, e me envolvo, pois sempre atinge pessoas que amo. Novembro último foi minha irmã, este mês um amigo poeta, sei como era e como é hoje em dia os manicômios, se existe algum problema, que deve existir, é pontual, não sistemático. Porém, graças à nossa cultura alternativa, proliferada sem qualquer controle ou cuidado, dezenas de jovens saíram da frente daquele palco para levantar a bandeira de uma causa ganha há quase uma década. O próprio Carrano na última vez que o vi, na editora, me falava de seu novo projeto, um livro sobre ecologia, queria a partir desse, trabalhar com crianças, enfim, o estandarte do não aos manicômios procurava novas causas pelas quais lutar. Esta feira alternativa para os escritores foi um fiasco, para mim pior ainda, pois nela soube que meu amigo Eduardo Barrox, fotógrafo e editor do Jornal da Praça, um dos mais alternativos que conheci, faleceu em fevereiro. Qualquer dia desses, aprofundarei melhor quem era e o que representava para a metrópole paulistana Eduardo Barrox, um dos homens que mais me inspiraram quando compus o personagem Torquato do meu primeiro livro, Oculta. Torquato foi inspirado em três homens basicamente, talvez a melhor parte saiu da observação da paixão e do orgulho que o Barrox tinha pelo o que fazia.
Paixão pelo que se faz. Nós, os alternativos, somos eternos apaixonados, como a paixão é cega, é melhor tomarmos mais cuidado, procurar enxergar mais do que ver, abandonarmos nossos preconceitos, largar os chavões das décadas de setenta e oitenta. Não nos enganemos acreditando que os profissionais do sistema e os políticos não nos atacam porque pensam que o que fazemos é bom, poucos são os que têm coragem de nos criticar, pois representamos a massa atuante, aquela que não assiste, faz. Mexer com pessoas do nosso tipo é sempre perigoso, facilmente viramos mártires, independente da justiça de nossas causas. Então, por falta de críticos corajosos, sejamos críticos de nós mesmos, sob pena de estarmos corrompendo a democracia pela qual muito lutamos, ter tanta liberdade agora, nos obriga a sermos no mínimo, mais responsáveis.
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O texto acabou ali em cima, ficou bom, mas não encontrei como citar o comentário crítico de um ou uma leitora identificado Capitalista, que leu o artigo sobre “A mídia e a gripe suína” no meu sítio e no blog do Sindicalismo e Cultura. De fato esta pessoa foi perspicaz ao analisar a falta de elementos melhores embasados que justificassem a crítica que fizemos aos telejornais, por não explorar e investigar a possibilidade do começo da gripe no México ter sido causada por instalações inadequadas de uma multinacional de carnes. No meu sítio esta pessoa fez a crítica com tom debochado, mas confesso que tomei seriamente aquelas palavras, achei sincero, inteligente e me fez repensar, através de pessoas assim, que não têm medo de falar o que pensa, é que a sociedade vai para frente e pessoas como eu podem rever valores e rotas. Obrigado.
Eliana de Freitas
Enviado por Eliana de Freitas em 04/06/2009
Alterado em 04/06/2009