Eliana de Freitas

Que histórias são essas?

Textos

A mulher que calculava
 
Qualquer semelhança com o filme "O homem que copiava" é mera coincidência, mas senão, tudo bem, ele copiava.

Esta frase inicial, coloquei, só porque a achei bem bolada e me foi inspirada ontem, enquanto eu esperava um ônibus, às 21 horas, embaixo de chuva, num ponto da Vila Madalena.

Lá estava eu, tentando encontrar um abrigo no toldo de uma lanchonete próxima ao ponto e conseguir que os pingos de chuva não molhassem o meu cigarro aceso, o meu caderno, o meu livro - estou lendo Ciranda de pedra da Lygia - e a minha bolsa.
 
Inconscientemente, ordenei os itens que carrego e protegia na minha ordem de importância, metódica...
 
Bem, eu estava no meu malabarismo, agora sei, não tão concentrada quanto deveria, quando vi passar uma mulher caminhando não rápido, embaixo de chuva, absorta às contas que fazia numa HP 12C.
 
Meu Deus do céu! Mulher sem sombra de dúvida quando encasqueta, não há quem dê jeito - graças a Deus eu não tenho nenhuma, mulher, é claro, HP 12C eu tenho.
 
Foi exatamente neste momento do segundo, no qual observei e malogrei a mulher que calculava, mesmo não sendo nada da minha conta se ela quer calcular andando numa calçada esburacada, escura e chuvosa, que meu cigarro molhou, xinguei, meu caderno caiu aberto, molhando um conto de amor, o primeiro sem qualquer picardia, que tento escrever há seis meses.

Nesse instante, parei de praguejar, a fim de pelo menos salvar a obra da Lygia Fagundes Telles, daquela água suja que descia e impregnava minha frustrada tentativa de escrever um conto puro, transluzente, límpido e por que não dizer: o meu primeiro de amor.

Vocês vejam que, se isto não acontece, se a frieza, a desconsideração, a ironia e o sarcasmo são tudo o quanto eu consigo colocar nas minhas histórias românticas, a culpa não é só minha, o acaso para os agnósticos, Deus para os crentes e o prefeito para mim mesma, são os verdadeiros culpados desta lacuna na obra que venho escrevendo.
 
Vamos abrir um parêntese aqui para falar do prefeito, eu não entendo nada de planejamento de obras, mas algo me diz que a reforma de todas as calçadas não deveriam primeiro quebrar a cidade inteira, para depois cimentar a cidade inteira, para depois dar acabamento na cidade inteira. Ocorreu-me um breve pensamento, se ele não deveria quebrar uma área menor, então, já a pavimenta, e assim sucessivamente, a fim de evitar que fiquemos com barro por grandes partes e enxurradas descendo com entulho nesta época de chuva. Que ódio eu estou desta reforma mal planejada pelo Exmo. Sr. Kassab, que ódio! O chamo de excelentíssimo e o Lula pelo nome, pois o prefeito eu nunca o vi mais gordo, não tenho intimidade.
 
- Adeus, sandálias de salto alto! - Gritam as paulistanas.
- Crianças, andem na rua, a calçada é perigosa, está esburacada e escorregadia - gritam as mães.
 
Mas, onde estávamos mesmo? Ah, sim, voltemos a fazer comentários maldosos da vida daquela mulher que calculava.

O que leva uma pessoa a andar distraidamente à noite, numa calçada com chuva, fazendo cálculos numa calculadora? Alguém poderia me dizer? Acho que nenhum de vocês, meus caros leitores, mesmo sendo muitos, já conto com mais de 400 fiéis leitores, embora, cada livro meu, não tenha ultrapassado a marca dos 200 exemplares vendidos. Os livros dados não contam.
 
Fui para casa lucubrando a mulher que calculava, a ciranda dos anões de pedra do jardim do livro da Lygia, o conto de amor enxovalhado e mais do que tudo, a demora neste longo trajeto que poderia ser tão breve e ligar-me à minha família depois de um dia honesto de trabalho quiçá em menos tempo. Novamente amaldiçôo o prefeito.
 
Lar, doce lar. Beijos, abraços, sorrisos, banho, comidinha quente, cervejinha gelada, piadas, gente dedilhando no violão, proezas da minha caçula, novos paqueras da minha moça, emprego novo do meu rapaz, saudade do que se casou, tudo bem igual, feliz, graças a Deus.
 
Ligo a tevê, deito, minha caçula comigo, começo a prestar atenção no telejornal.
- Haroldo Lima comenta que a Petrobrás achou uma reserva gigantesca em Santos, na bacia Pão de Açúcar...
Ouço esta frase e penso, mas isto é o tipo de informação que não se comenta, ou se avisa formalmente ao mercado ou se cala, comentários e boatos geram especulação. Que falta de critério! Primeiro me perdem aqueles computadores com informações sigilosas, agora, deixam este homem despreparado em comunicação, falar com a imprensa. Amanhã mesmo vendo minhas ações, estejam elas subindo ou descendo, não suporto esta incompetência. Estes são devaneios de uma ex-grande-executiva que hoje tem menos de quinhentos reais em ações.
Continuo ouvindo a notícia.
 
- Mãe, o que é ação? – A caçula me vem com esta.
- Hum? – continuo ouvindo o noticiário.
- Mãe, o que é ação?
- Espera o comercial.
 
- Ação, ação, bem... Quando vamos começar uma empresa, precisamos comprar muitas coisas, você sabe o que precisamos comprar?
- Sei, computador, impressora, telefone.
- Exato – minha caçula é muito inteligente – o dinheiro que usamos para comprar estas coisas se chama capital.
- Hum?
- Por exemplo, como se chama o dinheiro que você ganha?
- Mesada.
- Pois bem, o dinheiro que os donos de uma empresa usam para comprar os equipamentos da empresa se chama capital.
- Ah, entendi. Mas o que é ação?
- Então, como são vários donos, colocando vários dinheiros, eles dividem o capital em quotas, cada um põe dinheiro conforme a quota que pode comprar. Mas se a empresa for muito grande, mas muito grande mesmo, com muita gente querendo pôr dinheiro, aí eles não dividem o capital em quotas e sim em ação.
- Só se for muito grande?
- Bem grande, empresa bem grande, sólida, confiável, aí divide o capital em ações. Ação é uma parte do capital de uma empresa bem grande.
- Agora entendi. Mãe, a professora só falou que ação é verbo, só isso. E, mãe, o que é adjetivo?
Calei-me, prostrei-me, há algo errado comigo. Pior foi ouvir meu filho comentar com a minha outra filha, nem tão baixo:
 
- O que leva uma mãe a explicar capital e ações a uma criança de dez anos?
Eliana de Freitas
Enviado por Eliana de Freitas em 15/04/2008
Alterado em 13/09/2011
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