Eliana de Freitas

Que histórias são essas?

Textos


Uma filha de Maria.

             
      Fui avisada por email que uma fala sobre a resenha do meu livro passaria na rádio às 14 horas, que maravilha.
               Antes de sair de casa, sintonizei a rádio com a minha mãe, Maria - uma santa. Alegremente ouvi que tocava Folhetim de Chico Buarque, cantada por Gal Costa - enfim, estou ao lado dos grandes. 
               Regozijava-me; já quase gozava por estar ao lado do Chico, uma unanimidade na ala feminina de minha turma, embora sejamos em média 20 anos mais jovens que ele. Os mais íntimos sabem, guardo algumas preferências masculinas. Profissionais: jornalistas, artistas, médicos, psiquiatras, em resumo, os inusitados. Idade: acima dos cinqüenta ou com maturidade equivalente. Forma: Gordinhos, como amo os gordinhos... ou os altos e fortes... ou aqueles que se sentem em ego como. Tinha terminado essa parte do texto e submeti a uma amiga que disse: fala sério! Você gosta dos homens. Sucumbi à verdade, eu os adoro sem preferências. 
               No alfabeto das profissões masculinas ainda me falta, entre outras letras, o B. Tenho olhado com outros olhos os bombeiros, desde o acidente da TAM em Congonhas, que por sinal, me tirou o sono em duas noites. Uma dor e indignação tão grandes que valeriam uns dois romances, por ora, tomo o texto Desculpa esfarrapada publicado na internet, como suficiente em matéria de desabafo.
               Voltando ao assunto; da lista dos homens? Não! Da resenha tão bem escrita pelo Ramiro que está circulando nas rádios - mando minha amiga embora, ela estava atrapalhando esse conto e o meu recato, que tanto minha mãe preza e reza para que eu mantenha.
               Estava eu ao lado da minha santa mãe, Maria - eu já falei isso, toda orgulhosa de ser noticiada no mesmo lugar onde se ouve um Chico - o Buarque, é claro, quando a rádio dessintonizou e entrou o jingle: Paulinho, boa pessoa! - junto, uma propaganda de remédio para calvície.
               - Mas que raio de Paulinho é esse?
               Minha mãe quase começava a contar as glórias da biografia dele, que ela orgulhosamente conhece, levantei e recomendei que tentasse sintonizar novamente, eu estava saindo para a editora.
               Peguei o ônibus contando com a possibilidade de chegar a tempo para ouvir a resenha, triste engano. Moro em São Paulo, inesperadamente nesse mês de julho as chuvas estão torrenciais, contudo, as pessoas continuam ouvindo o homem do tempo, talvez para esquecer o trânsito. 
              Dentro de um ônibus incrementado, com o ar e o rádio ligados, quase duas horas de percurso. Na hora programada para a divulgação da minha obra, ainda estou lá parada, sentada no ônibus ouvindo nem sei qual estação, já conformada de não poder testemunhar uma possível consagração.
               Recostei a cabeça na janela, pairei na inveja de uma cena que vi num filme, onde cantores ainda desconhecidos, numa casinha tão humilde quanto sua gente, conseguiram sintonizar a rádio na primeira vez que sua música tocou. Toda a família ouviu, e eles estavam numa cidade tão pequena e tão perdida no meio do mato. Eu, aqui, numa das maiores cidades do mundo, com aparelhos de última geração, não consegui ouvir meu livro no rádio.
               "Não aprendi dizer adeus, não sei se vou me acostumar..." o rádio, agora, assim tocava. Envolvi-me na idéia do quanto me desenvolvi nessa arte, a de dizer adeus. Lembrei-me da Pit e Belinha, essa última dizia sua tão grande competência, na arte de dar um pé na bunda, já até legada à Cicinha, sua filhota. Perco-me de novo nas considerações e sinto-me quase igual à personagem Global, não em dar, mas em levar o famoso pé - tanto faz, ambos levam ao adeus. Filosófico, quão... - fui interrompida.
               - Leandro e Leonardo.
               - Ah?
               - Leandro e Leonardo cantavam essa música juntos, o Leandro ainda era vivo.
               Meu companheiro do banco do ônibus me tirou dos pensamentos.
               - Ah, é, ele ainda era vivo.
               - Gosta deles?
               - Não sei, nessa categoria só tenho certeza sobre o Zezé, gosto dele, mas é segredo.
               - Segredo? não posso contar? Fique tranqüila, sei guardar segredos.
               - Estive no primeiro show Amigos, meu marido ainda era vivo, aconteceu algo muito engraçado.
               - O que?
               - Sou baixinha, meu marido era bem alto, vimos um montinho de terra, um morrinho de uns 30 centímetros, meu marido teve a idéia de ajeitar-me em cima, para ver melhor o show que iria começar, naquele momento tocava Mamonas Assassinas.
               - Eles também morreram.
               - É, morreram.
               - O que aconteceu no show?
               - Minutos após, eu ajeitada em cima do morrinho, uma senhora chegou e disse que o morrinho era dela. Dizia que juntou aquela terra para ficar mais alta e que só ausentou-se para ir ao banheiro, queria o lugar de volta.
               - Parece justo.
               - Você também é louco? Que justo? Meu marido começou a perguntar: minha senhora, a senhora tem escritura dessa terra? Estamos num parque público, ninguém vai tirar minha mulher de cima do morrinho. A mulher ficou doida, continuou reafirmando sua posse da terra, puxava meu braço para eu descer, enquanto meu marido puxava meu braço para eu subir. Eu na verdade só ria e olhava os dois me puxando e gritando: Desce! Sobe! Meu esposo pedia pela escritura e a mulher repetia que parques públicos não a fornecem. Ri muito da situação, os amigos da mulher a convenceram fazer outro morrinho e deixar alguém tomando conta do lugar, caso fosse novamente ao banheiro. Não foi engraçada essa picuinha por terra, logo num parque chamado Chico Mendes?     
               - Chico Mendes morreu.
               - É, morreu.
               - Você perguntou se eu sou louco? 
               - Não.
               - Perguntou sim, no começo.
               - Perguntei? ah desculpa, não quis ofender.
               - Tive alta semana passada, estou indo às clínicas pegar remédios. Leandro morreu, os Mamonas morreram, Chico Mendes... acha que depressão mata?
               - Não sei, acho que não.
               - Mas, e se matar?
               - Não faz diferença, de depressão ou de qualquer outra coisa, um dia você vai morrer. Não só você, eu e todos aqui.
               - O motorista?
               - Sim, o motorista também.
               - Acha que ele vai bater o ônibus e nós vamos morrer?
               - Não, hoje acho que não, talvez um dia, talvez nunca.
               - Você aceita a morte?
               - Não cabe aceitar, aceitando ou não aceitando, um dia ela chega. A morte não precisa que você aceite ou concorde.
               - Isso é uma palavra profética, bíblica?
               - Deve ser, se não for, digamos que é, isso funciona bem.
               - Você é doutora das clínicas?
               - Não, sou escritora, apenas uma filha de Maria.
               - Prazer, Maria, trabalha no escritório?
               Não, de novo não, essa confusão. (1)

               Despedi-me, desejei boa sorte no tratamento, terminei o dia sem ouvir minha resenha na rádio, mas consegui acabar esse texto, com patrocínio do Ademir e apoio do Fábio, rapazes que conversavam sobre alcoolismo comigo na padaria. Eu ia citar João Ubaldo para eles, mas deixei para outro conto.
 
(1) Menção ao texto Cantada Inusitada.
Eliana de Freitas
Enviado por Eliana de Freitas em 26/07/2007
Alterado em 11/09/2009
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