Eliana de Freitas

Que histórias são essas?

Textos


Ficção e instinto de nacionalidade - Café literário, Bienal do Livro RJ

Esse bate papo entre Ana Maria Machado e Edney Silvestre deveria entrar para os livros de história. Ele é um retrato do pensamento brasileiro atual, no qual ainda não temos os planos traçados para o futuro, há algumas ideias, anseios, mas não um plano concreto, uma ideologia enraizada capaz de carregar em si a palavra: solução. Diferente dos cenários que seus livros trazem, nos quais alguns personagens têm na mente o que seria a solução para o nosso país.

O retrato que temos é exatamente esse, impresso pelas palavras desses grandes autores, refletimos o passado e constatamos o presente para tentar diagnosticar a origem dos nossos males de desigualdade, impunidade e ineficiência, quer seja como cidadãos, políticos, chefes de família, profissionais ou em quaisquer dos papéis que desempenhamos.

A conversa traz pensamentos desde Machado de Assis, o que nos une? O que nos identifica como brasileiros? Passa pela era Collor e deságua nas Diretas já.

Para mim, os pontos altos foram:
- ao falar de seu livro “Infâmia”, a Ana perguntar: sobre a questão da calúnia, o que faz outros, não tão maus, repetir palavras de um caluniador?

- ao falar da ligação de sua trama entre carrascos e vítimas, Edney lembrar de notícias recentes, cotidianas, nas quais uma criança é atirada de um carro e outros atropelam, só depois notam que tratava-se de um bebê. Indignação.

Costumo dizer que o que faz um grande escritor é o tamanho da indignidade que ele carrega no peito pelo drama que inventou. É esse sentimento impregnado nas entrelinhas que conduzirá o leitor palavra por palavra até o fim, buscando a conclusão, a justiça, a solução.

Fui às lágrimas duas vezes, me emocionei sem lágrimas outras tantas e não só por isso, talvez haja falhas na transcrição abaixo que me impus a fazer desse debate, portanto todas as críticas, sugestões e colocações que vierem para aprimorar essa iniciativa serão mais que bem vindas.
 
Espero que aproveitem tanto quanto eu, o enorme prazer que foi viver esse momento.

 
Ficção e instinto de nacionalidade – Café literário, 3 de setembro de 2011, às 18:30h
 

Participantes: Ana Maria Machado, jornalista, pintora e escritora; nasceu em 1941 no Rio de Janeiro, já vendeu mais de 18 milhões de livros pelo Brasil e em mais 18 países, vencedora no ano de 2000, do prêmio Hans Christian Andersen, considerado o prêmio Nobel da literatura infantil mundial, na Bienal autografa “Infâmia”; Edney Silvestre, jornalista e escritor, nasceu em Valença, em 1950. Vencedor do Prêmio Jabuti de Melhor Romance 2010 com seu primeiro romance "Se eu fechar os olhos agora". Na televisão é Repórter Especial da TV Globo e apresentador do Espaço Aberto Literatura da Globenews, na Bienal autografa “Se eu fechar os olhos agora”.
 
Mediadora: Rosa Maria Araujo
 
1ª. O que vocês acham que predomina na obra de vocês, as questões nacionalistas ou a ficção?
 
Ana – Predomina a ficção, mas não há como ser um livro brasileiro e não ter como aspecto a nossa sociedade.
 
Edney – É mais do que isso, seu livro Infâmia dá vários fatos históricos ao leitor, o personagem mais experiente informa o mais jovem, de gancho conta tudo para nós, ancorado na realidade para sabermos na ficção porque o personagem morreu, entender seu passado e a história da região. Eu vivi tudo isso em Valença, essa transferência histórica. Quando o governo Collor abriu o comércio para as importações de roupas, o maior volume foi jeans e camisetas, a fábrica da família Pereira Guimarães, com uma indústria não atualizada, não tinha como competir com os produtos Chineses que chegavam, e assim quebrou. Essa história interferiu na vida de cada habitante da região.
 
Ana – Há isso, mas em “Infâmia” eu quis refletir sobre a questão da calúnia: o que faz outros, não tão maus, repetir palavras de um caluniador?
 
2ª. Há entendimento Freudiano nessa obras, personagens apaixonantes e apaixonados, personagens com dramas psicológicos, como isso vai sendo construído?
 
Ana – O personagem começa com a realidade física, suas manias, vai crescendo e tomando forma, então vem sua história pregressa, o personagem cresce sozinho.
 
Edney – Quem surgiu primeiro foi a Anita, sem qualquer palavra, morta. A trama policial é psicanalítica, é uma investigação. O personagem comunista? José Saramago. O idealismo, não o engajamento político, mas o amor pelo comunismo, pela possibilidade de um mundo igualitário, um amor ingênuo, baseado apenas na fé e ela é necessária, se não se acreditar na possibilidade, não se chega à coisa alguma.
 
Ana – Sobre o personagem do embaixador, aposentado, casado, que perdeu uma filha. Enquanto espera por uma cirurgia de catarata, Camila lê para ele. Ele me despertou compaixão, não pena, para mim ele vive a maior das tragédias: não fiz por um filho o que podia ter feito. No começo, eu não sabia que o caminho da trama seria esse. Mas cresceu e tomou forma com a história, me sentia intrusa na vida dos personagens, usei esse embaixador para falar da bíblia. O “devia e não fiz” do personagem cresceu mais do que imaginei. O segredo dele, eu não sabia. O fim do livro tem algo definido, depois fui construindo os fragmentos desde o início.
 
Edney – No meu livro, não sabia quem seria o responsável pelo crime, não gostei dos acontecimentos de várias situações, mas foram inevitáveis.
 
3º. Para Machado de Assis, o instinto de nacionalidade era um sentimento íntimo, independente da cor, local e da precisão descritiva do ambiente. Para vocês como é esse instinto?
 
Ana – Que país é esse? Eu queria dizer outra coisa. Mas, esse artigo do Machado de Assis é de 1873 publicado em inglês numa revista americana, ele ainda não tinha escrito os grandes romances e refletia: O que fazia um escritor brasileiro escrever Brasil? Suas referências passavam por Gonçalves Dias – É isso que nos faz ser brasileiros? Falar da paisagem, nossos tipos? De forma vaga no início se constrói a maneira íntima de sentir. Sem se deter nos aspectos exteriores de ser brasileiro, a nossa linguagem reflete a maneira íntima de nos sentir. Eu não sei a resposta, eu escrevo brasileiro. Machado falava, esse instinto é a maneira íntima de se sentir.
 
Edney – Livros recentes portugueses, quando leio me encantam. Soam bem. Há uma composição gramatical própria. Pela psicologia construída dos personagens, não poderiam ser angolanos. Mesmo que se escreva um personagem português o sentir é brasileiro.
 
Ana – Não há pretensão de que os fatos reflitam um autor brasileiro. Não quero ser peremptória, mas Alberto Mussa experimenta culturas diferentes, você olha e define: só pode ser daqui. Continua indefinida essa resposta.
 
4º. O mundo está dividido entre carrascos e vítimas? Qual a ligação com essa narrativa?
 
Edney – Os pobres sofrem mais desrespeito, 90% dos crimes contra eles ficam sem solução. Escravos não eram tratados como pessoas, se referiam a eles como peças, não como seres humanos. Minha experiência como jornalista constata a violência contra crianças, infeliz a violência contra a mulher, tão presente, o que se fazem com velhos nos hospitais, os internam com nomes falsos e abandonam. É essa a ligação.
 
5º. O que recomendaria aos escritores iniciantes?
 
Ana - Continue lendo, leia e continue lendo. Assim, seu texto vai ficando mais complexo e refinado.
 
6º.) Talvez quem ler “Se eu fechar os olhos agora” nunca mais feche os olhos para certas violências que ocorrem contra as mulheres, esse tema era uma ideia?
 
Edney: Não uma ideia central, mas se usarem, eu acho bom.
 
Edney: Vou ler um trecho do meu próximo lançamento: “A felicidade é fácil”, um panorama dos anos 90 que devo lançar em outubro: ...
 
Não pude transcrever essa parte, pois me emocionei ao lembrar daquele dia, 25 de janeiro de 1984, aos 19 anos, em menos de 20 dias eu seria mãe do meu primeiro filho, não pude ir à Praça da Sé. Mas acompanhei como pude e lembrei na leitura do Edney, a fala de Franco Montoro, ao tomar a palavra no palanque: 'Alguém me pergunta se há aqui 300 mil ou 400 mil pessoas. Estão aqui, hoje, 130 milhões de brasileiros!'

Era tanta ideologia, e dela eu e muitos vivíamos. 
Eliana de Freitas
Enviado por Eliana de Freitas em 05/09/2011
Alterado em 26/07/2012
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