Eliana de Freitas

Que histórias são essas?

Textos

Mãos na cabeça, vagabundo!

              De dentro do carro, à espera da namorada do meu avô, lembrem-me de escrever sobre este romance qualquer dia desses, eu deliciosamente ouvia Modinha e resignadamente esperava por aquela mulher. Como mulher demora para se aprontar, eu sei porquê será, mas por que será?
          Dizer todas são iguais é tão simplista, mas é a pura realidade, como diria o meu pai.     
          Modinha foi ficando mais baixo, observem, baixo, porque é o som, ando cansada de ter que explicar o uso exagerado de elementos ocultos em meus textos.  Vamos lá, som mais baixo pela atenção que eu começava a dar para o jornal do bairro. Notícias sobre apartamentos para os de baixa renda, será com hífen ou sem? O hífen de acordo ao novo acordo tem me deixado louca, é tanta conclusão e informação desencontrada que eu tenho optado por até não escrever. E acreditem, eu gosto de escrever, o difícil é aprender. 
          Vocês imaginem, eu tomada pela inspiração, colocando dezenas de palavras por minuto na composição, e na releitura, lá vem a pergunta, é com hífen ou sem hífen? Vocês devem ter ideia, que por sinal perdeu o acento, do que virou a minha vida. Como estou generosa hoje, de bom humor, aproveito para informar aos menos informados que estreia também deixou de ser acentuada. Essa regra foi até fácil absorver. 
          Eu absorvendo regras... Nem às menstruais eu dava atenção, mas sabem de uma coisa, cansei de dar murro em ponta de faca, viver de criar casuísmos, dei um: chega! nisso tudo há algum tempo, e aos poucos, bem aos poucos, diga-se de passagem, tenho tentado me adaptar a regras, por exemplo: de trânsito, sou cidadã, tenho que viver em grupo, faz bem para a cidade se eu parar de questionar o rodízio e os locais de estacionamento. Tudo bem se quem tem dinheiro para ter vários carros de finais de placas diferentes não passa pelo perrengue que eu passo, tudo bem. 
          Outro exemplo, vamos gastar as palavras hoje, mesmo sendo esse texto uma crônica o que o obriga a ser sucinto. A indedutibilidade das despesas de alugueis. Quem recebe aluguel, pelo rendimento paga imposto de renda, e eu que pago a famigerada despesa, não posso abatê-la na minha base tributária para o cálculo do meu imposto devido, isso é injusto, mudou há pouco mais de uma década, eu não acho justo, é bi-tributação, acho que só a dedução dessa caiu com o tempo, o hífen de bi-tributação não.
          Além de tentar me adaptar a regras, resolvi ser fiel. Por favor, não chacoteiem pensando que antes dessa decisão eu pulava cerca a torto e a direito, não é disso que eu estou falando. Ser fiel é ficar lado a lado, às favas se for com hífen, interpretei sozinha que lado a lado é sem, pois o Chico Buarque no Leite derramado escreveu dia a dia sem hífen, embora colocou à-toa com hífen, recomendo que leiam esse livro, é bárbaro. Falei para vocês que o hífen está me deixando louca. Até com os leitores, que não tem nada a ver com as minhas dificuldades, eu divido este problema. Por favor, relevem, afinal, eu escrevi O sumiço da tia Zulmira, um puta conto, deem-me um crédito. Mas voltando ao ser fiel, ficar lado a lado para sempre, não precisa ser aquele carneirinho de presépio, pode criticar, impor, reclamar, fazer greve de sexo, com alguns funciona, porém não, o fiel nunca abandona.
          Eu já deveria ter aprendido isso há tempos, afinal, sou corintiana desde criancinha. Aliás, o que é aquele fofo, heim gente? É um fenômeno, eu chamo ele de Fofo, não sei como ele me chama, mas sei que me chama, só que eu ainda não ouvi. No dia que fui ao Pacaembu, a torcida não fez um segundo sequer de silêncio para eu ouvir aos apelos do Ronaldo por mim. Porém nosso dia ainda chega, está escrito, Corinthians campeão com vários gols do Ronaldo e ele ao levantar a taça agradece a Deus e a mim, por ter sido uma corintiana tão fiel. Desculpem, o Ronaldo mexe com qualquer sanidade que eu ainda tenha depois de duas vodkas.
          A fidelidade a que eu me referia naquele parágrafo era à igreja católica. Nem que eu seja a única lá dentro, vou ficar protestando: Jesus não faria isso com essa gente que participou do aborto na menina estuprada pelo padrasto.
          Digo a vocês, ser escritor não é nada fácil, ainda mais se você quer coerência entre vida e obra, amparadas nas regras de ortografia, Deus não criou coerência para tanta coisa, e se criou, não a deu a mim.
          O tamanho para esse texto ser uma crônica, está quase acabando, então, em poucas palavras vou justificar o título, assim está bem para vocês?
          Estou rindo. O bom de ser escritor e publicar é isso, se não estiver bom para o leitor, às favas também, coloquei em palavras aquilo o que eu queria, se o incomoda, não leia, mas se chegou até aqui é porque não resistiu, me leu até o final. A cada dia que passa fico melhor nisso, se vou ganhar dinheiro? Já falei para o Paulo, pacto com o diabo eu não faço.
          Naquele momento no carro, esperando a namorada do meu avô, distraída que só, ouvi a ordem:
          — Mãos na cabeça, vagabundo! 
          Tomei um susto, vocês não imaginam de que tamanho. 
          Meus olhos involuntariamente se dirigiram à cena. Um jovem em pé ao lado de uma moto, na qual um bebê com pouco mais de um ano estava sentado, ao lado do jovem um outro como ele, via o que o filho deste sabia fazer.
          — Mãos na cabeça, vagabundo!
          A cada ordem dessa pelo seu pai, o bebê colocava as suas mãozinhas na cabeça desnuda, poucos fios loiros o ornamentavam.
 
 
                                              .../...
 
          Lembro-me de ter ensinado meus filhos na infância a bater palminhas, até usei a música da Xuxa “cabeça, ombro, joelho e pé, joelho e pé, joelho e pé” para ensiná-los que eles tinham um corpo e que este era divido em partes e que cada parte tinha um nome. Ensinei muita coisa aos meus filhos, sexóloga que me intitulo, imagina se eu não ensinaria o nome das partes do corpo. Mas nunca senti a necessidade, entre tantos ensinamentos que precisamos dar, de dizer-lhes que algum dia alguém os nomearia vagabundos, e que se ouvissem isso, prontamente deveriam colocar as mãos na cabeça.
          Pensei, essa gente não é do mesmo país que eu. Tampouco temos o mesmo código de ética. Tampouco, essa gente está educando seu filho. 
          Mas, cansada de me enganar e pousar de superior: essa gente é do mesmo país que eu! Onde eu estava quando isso passou a eles ser obrigatório, a ser ensinado para uma criança?
          Daqui a vinte anos, esse bebê será um adulto.
          Bem provavelmente, daqui a vinte anos, ele será julgado por uma corte que baseia-se nas leis que gente como eu fez e aprovou. E esse bebê será condenado. Oxalá permita que a pena de morte não nos tenha chegado.
          Em sua defesa ele só poderia dizer:
          — Fiz tudo o que meu pai me ensinou.
Eliana de Freitas
Enviado por Eliana de Freitas em 14/04/2009
Alterado em 27/07/2010
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