Eliana de Freitas

Que histórias são essas?

Textos

                              Cantada inusitada

          Deve existir em mim a simplicidade da Macabéa(1), ou algo parecido, que outra explicação? 

          Vinte e uma horas, caminho em direção ao supermercado. Antes de tomar o primeiro ônibus rumo a minha casa, devo comprar carne, tang e dois legumes. Hoje, vou pagar um real para cada legume que as crianças comerem, essa tática deve funcionar, talvez não tão educativa e honesta, mas os fins justificam os meios. Será? 
          Sem filosofia, caro leitor, por favor. É fácil falar quando não se tem que ensinar boa alimentação, além de três mil outros ensinamentos, em minutos diários de convivência com os rebentos, ainda sem tornar esse diminuto tempo, em um campo de batalha. 
          Já fiz de tudo, gelatina de beterraba em formato de sol, cenouras cortadas como estrelinhas, promessas de juventude eterna, ordens que não admitem qualquer contestação, enfim, nada funciona. Vou pagar um real para cada garfada, e pronto. Simples. Embora não tenha sonhado com isso, minha casa é habitada por um bando de mini-capitalistas selvagens, com os quais eu tenho o maior prazer de gastar até o último dos meus centavos. 
          Com esses maus e porcos pensamentos, divagava entre as gôndolas do mercado, então vi uma cerveja, uma latinha bem gelada; boa idéia! a tomarei enquanto espero o segundo ônibus, que sempre demora. 
          Quatro míseras, mas pesadas sacolinhas, sempre pego mais do que planejo, entro no primeiro ônibus. Vazio! graças a Deus. 
          Sento, tento acomodar as minhas coisas, verificar se o celular tocou enquanto eu planejava o encontro com os filhotes. Pois é, quando penso sobre eles, não ouço nada. E quando estou com eles e penso sobre mim, não ouço o que eles falam, mas balanço a cabeça e faço um sorriso tão cúmplice, mas tão cúmplice mesmo, que eles não notam o meu egoísmo eterno. Aquele, sabe, aquele velho companheiro dos filósofos, escritores, poetas e toda a raça que só faz olhar para fora com distância, e para dentro com idolatria. Poucos pontos depois dessas novas considerações, por sinal masoquistas, às quais dei um basta! o meu local de descida. 
          Ando, chego ao ponto, o segundo ônibus não passa, sento no banco, lembro da latinha de cerveja, que lembrança maravilhosa... acredito nessa hora que sou filha de Deus, ele me provê tudo na hora que preciso. Ponho as sacolas no chão, a bolsa no colo, enfio a unha naquela argolinha, sem medo de que se quebre, minhas unhas são grandes e fortes, além disso, o risco é por uma boa causa, minha sede de relaxamento, a qual a vaidade cede. 
          - Oi, posso falar com você? 
          - Ahn? 
          - Posso falar com você? 
          Penso - será que ele quer me vender alguma coisa? Estou dura. Mas ele não tem nada nas mãos. 
          - Pode, claro, pois não. 
          - Sabia que hoje eu podia! Sabe desde quando eu te vejo? 
          - Como? 
          - Eu te olho pra bem mais de um mês. Sempre séria, não olha pro lado, não vê ninguém. Mas hoje quando vi você sentando, abrindo uma cerveja, pensei, ela hoje está relaxada, hoje eu falo com ela. 
          - Onde você me vê? - nem sei como essa pergunta saiu, no íntimo já contestava a minha decisão de comprar cerveja e beber na rua. Como isso me deixou exposta...
          - Aqui, no ponto. Quem é que não vê uma mulher como você? Só se for cego. Você é forte, encorpada, posso me sentar? 
          - O banco é livre, moço. Estou só esperando o meu ônibus. 
          - E eu não sei? Você pega o Circular Santana, desce no cemitério perto da curva do Vieirinha, tem vez que vai lendo de pé, se segurando pela cordinha só com uma mão. No que você trabalha? 
          - Sou escritora. 
          - Sei no escritório, mas o que você faz? 
          - Sou escritora, escrevo. 
          - Ah, trabalha no escritório, né? Eu sei, é bom para mulher trabalhar em escritório, serviço mais leve. Eu sou motorista, adivinha da onde? 
          - Não faço idéia. 
          Ele levanta-se, mostra o emblema no bolso do uniforme, e pergunta se eu vejo. 
          - Conhece? 
          - Desculpa, moço, mas não. 
          - É a maior distribuidora de equipamentos de segurança. A maior! Já entreguei equipamento na casa de todos os bacanas dessa cidade. Fala o nome de um ricaço, um cara importante. 
          - Moço, eu estou só esperando o meu ônibus. 
          - Não me chama de moço, meu nome é Romildo, como você se chama? 
          - Romildo, prazer. De onde você é? 
          - Sertânia do Juramento, divisa de Pernambuco com Alagoas. 
          - Bacana, e faz tempo que está aqui? 
          - Desde 1989, mas já fiz futuro. Tenho um terreno em Itapecerica e outro no Jardim Ângela. Quer dizer, não é bem lá, é um pouco depois, Nakamura, quer dizer, um pouco mais longe, mas é encostado no Nakamura, você vai ver. 
          - Eu não vou ver o seu terreno, Romildo. 
          - Moça, não se avexe, sou um homem trabalhador, desde que cheguei nessa terra só faço trabalhar, agora ta na hora de eu me aprumar, ter uma família, você é sozinha, não é? 
          - Não, tenho 4 filhos, 6 irmãos... 
          - Pode parar, não é disso que eu to falando. Você não tem nem marido, nem namorado. 
          - É, não tenho. 
          - Eu sabia, até comentei com o Zé, tinha certeza. Magina que um homem que tivesse uma mulher dessa, ia deixar andar sozinha na rua, apesar de que paulista é muito besta. Comentei com o Zé, ele trabalha comigo, vem por aqui de vez em quando. Mas olhe, pergunte o nome de um bacana, já fui na casa de todos. 
          - Lula. 
          - Esse não, mulher, esse é pobre, é presidente, mas era torneiro, fala alguém importante de verdade. 
          - Romildo, você é um homem inteligente, trabalhador, bem relacionado, mas... 
          - Não fala nada, o que você gosta de fazer no fim de semana? Gosta de cinema, de forró? Responde, gosta de forró? 
          - Gosto, Romildo, mas... 
          - Sem mais, nem menos, vou levar você num forró um dia desses, você precisa dançar, espairecer, esfriar a cabeça, é muito sacrifício uma mulher pegar tantos ônibus, ainda mais tem quatro filhos. 
          - Romildo, é muita consideração sua, mas... 
          - Deixe-me dizer uma coisa, Deus me deu uma palavra. 
          - Você fala com Deus? – parei de olhar a direção do ônibus, encarei-o, disse isso rindo e nem disfarcei. 
          - Não ria, você é temente a Deus, eu sei. 
          - Eu sou temente a Deus. 
          - Então, ele me deu uma palavra no fim do ano passado. 
          - E qual foi a palavra. 
          - Romildo, está na hora... 
          - Deus te chama pelo nome? 
          - Me chama, não me atrapalha, tem mais de mês que eu tento falar com você. 
          - Desculpe a minha falta de respeito, Romildo, pode falar. 
          - Deus falou assim: Romildo, está na hora de você achar uma companheira. 
          - E essa companheira sou eu? 
          - É, com certeza. Séria, trabalhadeira, encorpada...
          - Romildo, desculpe interromper, encorpada de novo, estou tão gorda assim? 
          - Ô minha filha, você não é gorda não, é encorpada, forte, tem quatro filhos e com certeza pode ainda ter mais uns três fácil, fácil. 
          - Fácil? Minha nossa senhora, Romildo, confessa, Deus não falou isso. 
          - Não, é verdade, isso ele não falou, mas ele me deu uma palavra de que é hora de eu ter uma companheira e eu quero que seja você. É você a mulher que Deus me preparou.
          - Romildo, talvez esteja na hora de você ter uma companheira, mas essa companheira não sou eu.
          - Como sabe que não é você? nem me conhece ainda, você vai gostar de mim, eu gosto de você. O que espera mais dessa vida? Casar, não é bom?
          - Casar é ótimo, Romildo, mas eu espero outras coisas por enquanto, além do ônibus, que por sinal já vem chegando.
          - Eu não vou deixar você pegar esse ônibus.
          - Como assim?
          - Ta muito cheio e a gente ainda não combinou nosso passeio do fim de semana.
          - Eu não vou passear contigo no fim de semana, que idéia, preciso ir, foi um prazer.
         - Você parecia tão calma e sossegada, agora ta arretada, faz assim, pode ir, vou deixar você pegar esse ônibus. Fale com Deus hoje na hora que for se deitar e me conta amanhã o que ele lhe disse. Ta bem assim?
          - Você então vai me deixar pegar o ônibus? Puxa vida, obrigado.
         - De nada, deixo sim.
         Romildo definitivamente não conhece ironia, melhor eu falar direito com ele. Ah quer saber? vou indo, com certeza não esbarrarei mais com ele, essa cidade é enorme.
         - Tchau, Romildo, tudo de bom.
         - Ei! Você esqueceu de dizer seu nome. Ei!
          Subi no ônibus, como quem não tinha ouvido o pedido dele, enfim, só mais duas conduções e eu chego em casa e cumpro com o plano que tinha, antes desse inusitado encontro.
         Chego em casa, àquela minha adorada e velha rotina felizmente me espera. Patins, bola, livros e cadernos espalhados, eu grito, finjo que sou brava, depois as garfadas me custam os reais do plano, vários novos episódios dessa família busca-pé me chegam aos ouvidos. Sinto-me alegre e segura, estou em casa, nada na vida poderá ser melhor ou pior do que isso. Com esse pensamento, solto uma gargalhada, os rebentos ficam felizes, tomam que foi devido a alguma de suas histórias ou travessuras. Duas horas depois todos dormem.
          Vou para a minha escrivaninha, a bíblia de um lado, alguns textos começados do outro, no meio um envelope com uma trezena de Santo Antônio deixada por minha mãe, com o seguinte bilhete: Faz essa trezena, filha, e se abandone nas mãos de Deus.
          Fico olhando a trezena, eu adoro Santo Antônio, mas, e se o Deus for o mesmo do Romildo? 
          Então começo a trezena: Olha, Santo Antônio, Deus andou falando para um tal de Romildo... 

(1) Macabéa - Personagem do livro A Hora da estrela de Clarice Lispector.
Eliana de Freitas
Enviado por Eliana de Freitas em 25/06/2007
Alterado em 14/05/2009
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